Anistia.
Dia da vergonha. Retrocesso da legislação ambiental. Vitória dos ruralistas e
do poder econômico. Escalada do desmatamento. Dilapidação do patrimônio
natural. Descumprimento de metas de clima e biodiversidade. Vexame na Rio+20.
Flagrante desrespeito à ciência. Urgência do veto presidencial. Essas são
algumas das expressões utilizadas pela grande maioria da mídia, por quase todas
as ONGs, vários deputados e senadores e outras pessoas sobre a votação final do
Código Florestal na Câmara.
Após
quase uma década de discussões, em que todos os setores interessados puderam
expor seus pontos de vista - ONGs, movimentos religiosos e sociais, academia,
representantes de entidades científicas, produtores, políticos (inclusive de
outros países) - a despeito de quem defenda o contrário, rotular o novo Código
Florestal de catástrofe ambiental reflete a visão de quem não aceita concessões
e queria vencer a guerra mantendo o código de 1965.
Diálogo - O problema dessa postura de ganhar ou perder é
que ela não cabe numa discussão dessa magnitude. Rever de forma democrática uma
lei tão relevante para o País exige diálogo, construção de consensos sobre
temas incrivelmente sensíveis como é a consolidação de atividades produtivas em
certas Áreas de Preservação Permanente (APPs) e a importância de sua
recomposição em outros casos.
A
nova lei, que não pode tratar somente de conservação florestal sob pena de cair
no erro histórico de não disciplinar e organizar o uso da terra, é fruto de uma
intensa negociação, em que cada grupo de interesses teve de fazer concessões. A
leitura derrotista parte da premissa de que era preciso exigir as obrigações do
código atual, ou seja, a recuperação integral de todas as APPs e a recomposição
das áreas de Reserva Legal (RL) nas próprias fazendas, tirando áreas
produtivas.
Curiosamente,
a demanda por revisar o Código Florestal significava justamente alterar uma lei
antiga, difícil de ser cumprida, que não ajudava o Estado a controlar de forma
eficaz o desmatamento ilegal e não trazia incentivo algum para quem conserva
florestas. Exigir a recomposição de 100 milhões de hectares de RL e APPs, como
prevê o código atual, é factível diante da realidade de nosso País?
Regularização - A resposta para essa pergunta reflete, em grande
parte, as bases do novo código. Afinal, se fosse para manter as regras atuais,
a famigerada reforma não seria necessária. É crucial destacar que as duas
obrigações centrais de conservação de vegetação nativa - APPs e RLs - continuam
a existir. O que mudou foi a forma de regularizar propriedades que já estavam
vivendo em não conformidade.
De
agora em diante existem três situações: 1) quem já tem áreas com florestas para
APP e RL deverá mantê-las, bem como quem adquirir novas áreas; 2) quem possui
passivos terá alternativas para cumprir, e aqui se situa o enorme desafio da
regularização ambiental de quase 90% das fazendas brasileiras; e 3) quem
desmatou depois de julho de 2008 não terá alternativas senão cumprir as regras
das APPs e Reserva Legal, sem exceções.
Produtores
que desmataram APPs até julho de 2008 terão de recuperar no mínimo 15 metros ao
longo dos rios de até 10 metros e essa recuperação não ultrapassará o limite da
RL nas propriedades de até quatro módulos fiscais e da agricultura familiar.
Além disso, para continuar usando a área, os produtores deverão adotar
critérios de proteção do solo e da água que serão aprovados pelo Poder
Executivo. Isso significa que haverá recuperação de APPs, ponto mais sensível
de toda a negociação do novo código.
APPsÉ importante frisar que os 15 metros de recuperação de APPs ripárias é
um limite mínimo, que poderá ser ampliado pelos Estados por meio dos Planos de
Regularização Ambiental. Caso o texto aprovado não adotasse uma recuperação
mínima, poder-se-ia falar em consolidação total e anistia como sustentam certos
argumentos.
Para
a RL, que continua a mesma (80% com possibilidade de redução para 50% na
Amazônia, 35% no Cerrado e 20% nas demais regiões), ao invés de ter de recompor
na mesma propriedade ou compensar na mesma microbacia, o que é extremamente
limitante, o produtor poderá optar por recompor na própria fazenda ou
arrendar/comprar áreas de vegetação nativa relevantes para a biodiversidade no
mesmo bioma. É fundamental destacar que as áreas que farão parte do mercado de
compensação são as que vão além das obrigações de APP e RL, ou seja, que
poderiam ser legalmente desmatadas.
O
argumento de que a RL na Amazônia caiu de 80% para 50% é correto, mas ninguém
fala que a regra do código vigente já permitia essa redução, como é o caso dos
Estados do Amazonas e do Pará.
Na
prática, a aprovação dessas alternativas para cumprir a nova lei exige que os
produtores não desmatem novas áreas. Como a grande maioria precisará se
regularizar não é plausível enxergar uma retomada explosiva de desmatamentos
como se alega. Caso o desmatamento seja ilegal, deverá ser coibido nos termos
da nova lei, que reflete as mesmas obrigações do código de 1965, pois serão
desmatamentos ocorridos depois de 2008.
Cadastro - Como base para a regularização, o Estado deverá
aprimorar o Programa Mais Ambiente, que será chamado de Cadastro Ambiental
Rural (CAR). Partindo do princípio de que todas as propriedades serão
cadastradas, com fotos de satélite de alta resolução compradas pelo Ministério
do Meio Ambiente, o governo e a sociedade terão clareza sobre o quanto de APPs
e RL o Brasil possui, e o quanto deverá ter nos próximos anos com base na
regularização.
Isso
implica, de um lado, papel do Estado em gerir e monitorar desmatamento, o que é
fundamental. De outro, permitirá separar os produtores que se regularizaram, e,
por isso, terão prestado um serviço ambiental, o que refuta a tese da anistia,
daqueles que ainda estão em débito e deverão sofrer as penas da lei.
É
intrigante ver que, em vez de pensar o CAR como ferramenta estratégica, vários
argumentos contestaram a desobrigação de postar todas as informações na
internet, o que seria uma exposição pública desnecessária e até ilegal. O
importante é que os órgãos ambientais tenham as informações, que de forma
agrupada serão repassadas para a sociedade.
Vegetação nativa - Há inúmeros benefícios do texto, ao contrário de
falácias e argumentos que pintam um cenário de caos ambiental à véspera da
Rio+20. O Brasil possui mais de 60% de vegetação nativa e cerca de 250 milhões
de hectares destas áreas estão nas fazendas brasileiras. Esse incalculável
ativo ambiental não é vergonha para ninguém, e sim, uma vitória diante de um
mundo devastado.
O
Brasil ganha uma lei realista, que poderia ser aprimorada em certos pontos, mas
que permitirá consolidar o desafio da conservação ambiental e da expansão
sustentável da agricultura. A demanda pelo veto, lastreada no sentimento de
derrota, mostra que tem gente que não aceita revisitar a lei velha e ineficaz,
a fim de construir uma nova, moldada pela realidade brasileira, que incentive a
regularização ambiental e reforce o combate ao desmatamento ilegal. Felizmente
o bom senso prevaleceu, e entendo que será essa a visão da presidente Dilma.
Rodrigo C.
A. Lima,gerente-geral do Instituto de Estudos do Comércio e
Negociações Internacionais (Icone), é pesquisador da Rede de Conhecimento do
Agro Brasileiro (RedeAgro). E.mail: rlima@iconebrasil.org.br